domingo, 8 de julho de 2012

O cristão e o vinho – O que a bíblia ensina sobre a bebida alcoólica?

O meio protestante (ou evangélico, como queiram) é notadamente o seguimento da cristandade mais voltado para o estudo e a observância da Bíblia Sagrada. Desde a época da Reforma Protestante que o próprio conhecimento em si (em suas mais variadas vertentes científicas e filosóficas) ganhou força e desenvolvimento no mundo, sendo a Reforma – com seus teólogos reformadores – uma das principais responsáveis pelo desenvolvimento da literatura alemã, inglesa, francesa, e etc., por intermédio da tradução da Bíblia para essas e outras línguas.

A cada ano que se passa o conhecimento teológico só vem sendo cada vez mais lapidado e aperfeiçoado no segmento reformado da cristandade, com uma expansão de produções teológicas e de um acervo de literatura bíblica sempre ascendente. Hoje são inúmeras as editoras evangélicas espalhadas pelo Brasil e pelo mundo, dotadas de uma boa safra de teólogos altamente gabaritados e preparados na Sagrada Escritura.

Porém, ainda que o mais raso estudioso da teologia tenha conhecimento do fundamento bíblico do princípio da Sola Scriptura, ainda não raro encontramos certos temas relativamente “complicados” de serem tratados e abordados de um modo puro e imparcial em nosso meio. Um deles (e um dos principais) é o do relacionamento entre o crente e a bebida com conteúdo alcoólico.

O fato é que até mesmo nas igrejas ditas mais “liberais” o assunto bebida alcoólica é difícil (principalmente nas correntes pentecostais clássicas e no Brasil). Verdadeiramente será raro achar um crente em Jesus com o qual você consiga prosear biblicamente sobre o assunto, pois a mente da maioria esmagadora dos evangélicos está, digamos, “formada” para condenar imediatamente o uso (mesmo que moderado) de qualquer bebida alcoólica.

Mas afinal de contas, o que a história judia e cristã, e principalmente a Bíblia (nossa regra maior de fé e conduta humana) têm a dizer a respeito deste assunto?

Vamos descobrir!


UMA ABORDAGEM HISTÓRICA

Fazendo empréstimo das palavras do irmão Danilo Fernandes (editor do Portal Genizah), temos o valioso registro da história da Igreja Cristã sobre o tema bebida alcoólica, em artigo de sua autoria publicado na festejada revista cristã “Cristianismo Hoje” (Leia o artigo completo aqui http://www.genizahvirtual.com/2012/07/o-evangelico-e-o-alcool.html):

“O que a maioria dos evangélicos brasileiros desconhece é que esta visão estigmatizada acerca do álcool é coisa muito recente na história da Igreja. Ao longo de quase 2 mil anos de cristandade, prevaleceu a noção de que a bebida, em si, é neutra, uma dádiva do Senhor que traz alegria – sendo o seu consumo excessivo, ou embriaguez, esta sim, pecaminosa. De fato, muitos crentes se escandalizariam ao descobrir que, na galeria dos heróis da fé protestante, homens e mulheres de Deus consumiam bebida alcoólica (...) O produto da uva era parte fundamental da cultura, da religiosidade e da economia do povo hebreu, desde sua origem”.

Realmente a questão do uso (moderado) da bebida alcoólica sempre foi – na história da cristandade – tratado com normalidade. Aprendemos ainda que tal assunto foi abordado já no primeiro catecismo cristão de que se tem registro, a famosa Didaquê (também conhecida como Instrução dos Doze Apóstolos), datada do século I, ou seja, elaborada na Era Apostólica da Igreja. Em referido catecismo ficou cristalino a liberdade do livre uso do vinho, tanto na celebração da Ceia do Senhor, bem como no consumo cotidiano dos irmãos primitivos, onde inclusive havia uma instrução determinando a existência de uma reserva de vinho da comunidade, para ser servida aos profetas visitantes e, quando na ausência destes, fornecido aos pobres.

Continua o irmão Danilo: Clemente de Alexandria (que viveu aproximadamente entre os anos 150 e 215 da Era Cristã) julgava absolutamente justo ao homem consumir a bebida para o seu relaxamento e defendeu fortemente a presença obrigatória do vinho na Ceia do Senhor, contra as tentativas de gnósticos de substituir o vinho por água (...) O fim do Império Romano, no século 5, fez surgir o modelo econômico feudal, no qual os mosteiros, abadias e outras estruturas religiosas passaram a produzir os seus víveres – e o vinho era item fundamental, não apenas na dieta, mas para as celebrações religiosas. A cerveja também era produzida e largamente consumida pelos religiosos. Os monges foram responsáveis pela maior parte da produção de vinho e cerveja na idade média e também pelo aprimoramento dos processos de fabricação.

O irmão Danilo Fernandes prossegue com a descrição histórica até chegar à época da Reforma Protestante: “A Reforma Protestante é marcada pelo retorno às Escrituras, mas também pelo esforço dos reformadores em romper com as tradições católicas o quanto fosse possível, estabelecendo uma distância não apenas teológica, mas também cultural. Contudo, a visão dos reformadores quanto ao consumo da bebida não recebeu novo escrutínio, ao contrário: eles doutrinaram a Igreja a receber a bebida como uma bênção de Deus e a usufruir dela com moderação, não se deixando dominar por ela. Lutero consumia vinho e era conhecido como um grande bebedor de cerveja, produzida por sua esposa, Catharina. Já João Calvino recebia como parte de seu salário anual da Igreja Reformada suíça sete tonéis de vinho.

Inquestionavelmente a Reforma Protestante foi uma grande obra levantada por Deus para reavivar a Igreja Cristã da Idade Média, a qual havia sido feita refém dos abusos e desvios doutrinários e teológicos da Igreja Católica Romana. Mas não vemos nenhum reformador combatendo o recorrente uso da bebida alcoólica no meio da cristandade. Como bem já citado acima, a esposa de Lutero fabricava a sua própria cerveja, a qual o reformador alemão consumia com regularidade; bem como João Calvino recebia tonéis de vinho como porção do seu pagamento por parte da Igreja Reformada Suíça. Poderia também (e tranquilamente) discorrer linhas e mais linhas sobre a relação (bem próxima) entre o reformador escocês John Knox com o whisky. As palavras de Martinho Lutero refletem bem a naturalidade com a qual a bebida alcoólica era tratada no meio religioso cristão do século XVI: “E enquanto eu dormia ou bebia a cerveja de Wittenberg junto de meus amigos Philipe e Amsdorf, a Palavra enfraquecia o papado de forma tão grandiosa que nenhum príncipe ou imperador conseguiu infligir-lhes tantas derrotas. Eu nada fiz: a Palavra fez tudo” (Martinho Lutero, LW 51.77).

Por fim, só vemos a contemplar a primeira objeção à bebida alcoólica no século 18, com o movimento metodista emplacado pelo célebre inglês John Wesley. A partir daí a tese da abstenção total da bebida alcoólica veio ganhando força no meio evangélico, com reflexos mais fortes no meio pentecostal brasileiro.


UMA ABORDAGEM BÍBLICA-TEOLÓGICA

A Bíblia é um livro que contém mais princípios que mandamentos isolados. A bem da verdade, todo mandamento bíblico (objetivo) é o reflexo de um princípio geral-norteador maior (de caráter essencialmente subjetivo). Devemos ter a consciência de que assim como no Direito o subjetivo pesa tanto quanto o objetivo, na justiça divina também não é diferente. Deus consegue não ser um intransigente total e ainda assim cumprir a justiça de sua Palavra. Provérbios 12:22 diz que “O homem de bem alcançará o favor do SENHOR, mas ao homem de intenções perversas ele condenará”, ver ainda Hb 4:12 com atenção e Lc 10:13,14; 1 Sm 16:7; Pv 6:16-19; Mt 22:35-40; Rm 13:8; Gl 5:22,23. Devemos ainda compreender que mais importante é a intenção motivadora do coração em praticar determinado feito, do que o próprio e mero ato cumpridor e observador da lei (mandamento objetivo); é o que podemos perceber claramente em Mt 19:16-24. Portanto, devemos ter a consciência de que na questão bíblica da bebida alcoólica (notadamente do vinho) não é diferente.

De todo modo, percebemos de pronto que não há simplesmente nenhuma norma bíblica proibindo o consumo moderado de bebida alcoólica (a partir de agora podendo ser tratada neste artigo somente como vinho). A palavra de Deus censura o consumo imoderado do vinho (cf. Pv 23:29,30; Is 5:11; Dt 21:20; Rm 13:13; Gl 5:21; 1 Pe 4:3; Ef 5:18; 1 Tm 3:8; Tito 2:3; 1 Co 5:11; Lc 21:34), mas não o consumo moderado do mesmo.

Destarte, em Provérbios 23:20 está escrito: “Não estejas entre os beberrões de vinho, nem entre os comilões de carne”. O vocábulo hebraico para “beberrões de vinho” é sâbhâh, que significa “beber fartamente”, “ficar embriagado”, sendo também sinônimo de “bêbado”. Tal significado fica ainda mais evidente ao se analisar que tal palavra está posta justamente ao lado de “comilões de carne”, ou seja, o que se censura em Provérbios 23:20 é o exagero, tanto no vinho como na ingestão de alimentos (cf. Lc 21:34: ‘E olhai por vós, não aconteça que os vossos corações se carreguem de glutonaria, de embriaguez’).

Destaque-se ainda que toda vez que a bíblia trás no Novo Testamento a reprovação a “bebedice” e “bebedeiras”, cita tais vocábulos imediatamente ao lado do vocábulo “glutonarias” (cf. Rm 13:13; Gl 5:21; 1 Pe 4:3), em uma clara alusão que a reprovação repousa sobre o excesso, tanto na bebida como na comida do banquete.

O vinho tem uma representatividade tão grande em toda a Bíblia que foi instituído como elemento dos sacrifícios nas cerimônias de consagração da Antiga Aliança (Êx 29:40; Esdras 6:9), cf. Lv 23:13: “E a sua oferta de alimentos, será de duas dízimas de flor de farinha, amassada com azeite, para oferta queimada em cheiro suave ao SENHOR, e a sua libação será de vinho, um quarto de him”. Ver ainda Nm 15:5-10 e 28:14. Ainda no Antigo Testamento vemos a seguinte sentença: “E aquele dinheiro darás por tudo o que deseja a tua alma, por vacas, e por ovelhas, e por vinho, e por bebida forte, e por tudo o que te pedir a tua alma; come-o ali perante o SENHOR teu Deus, e alegra-te, tu e a tua casa” Dt 14:26.

Analisemos ainda as palavras de Isaías: “Ó VÓS, todos os que tendes sede, vinde às águas, e os que não tendes dinheiro, vinde, comprai, e comei; sim, vinde, comprai, sem dinheiro e sem preço, vinho e leite. Por que gastais o dinheiro naquilo que não é pão? E o produto do vosso trabalho naquilo que não pode satisfazer? Ouvi-me atentamente, e comei o que é bom, e a vossa alma se deleite com a gordura” Is 55:1,2. Oras, há aqui um convite divino para comprar vinho. Percebe-se mais uma vez que o consumo moderado de vinho não é censurado, mas sim chega a ser incentivado! Neste exemplo o vinho é citado ao lado do leite, notadamente como sendo também um alimento, um alimento bom e que satisfaz (versículo 2).

O salmista afirma que é Deus quem faz o vinho, o qual alegra o coração do homem: “E o vinho que alegra o coração do homem, e o azeite que faz reluzir o seu rosto, e o pão que fortalece o coração do homem” Salmos 104:15. Oras, qual vinho será esse senão o vinho alcoólico? Pode, porventura, o suco de uva não alcoólico alegrar o coração do homem? Este versículo é uma clara alusão ao vinho fermentado, alcoólico. Destarte, o prensado natural da uva é o mosto (não alcoólico), o qual evolui rapidamente para um produto alcoólico em função da fermentação natural.

No Novo Testamento, conforme já citado, o ensino é a censura ao exagero, e não ao vinho em si. Oras, porventura o primeiro sinal e milagre de Jesus não fora justamente transformar água em vinho?! Destarte, Jesus transformou a água em vinho, e o termo original usado em Jo 2:9 (grego oinos) é o mesmo usado em Ef 5:18, onde Paulo fala do vinho alcoólico capaz de embriagar. Ademais, a palavra grega para “embriagueis” em Ef 5:18 é methyskô (E não vos embriagueis (methyskô) com vinho (oinos), em que há contenda, mas enchei-vos do Espírito), que significa “intoxicar”, “estar embriagado”, palavra correlacionada com methysos, que significa “bêbado”, “beberrão”, e sendo methyskô ainda a forma prolongada transitiva de methyô, que significa “beber até a intoxicação”, “ficar embriagado”, “beber muito”. Portanto, Jesus transformou água em vinho alcoólico, capaz de embriagar, tanto que os participantes da festa de casamento em Caná não perceberam nenhuma diferença entre o vinho transformado por Jesus e os vinhos que eles costumavam beber e já tinham bebido na festa.

Mas não fica só nisso, ao ponto de vermos recomendações de consumo moderado de vinho no Novo Testamento. “Não bebas mais água só, mas usa de um pouco de vinho (oinos), por causa do teu estômago e das tuas freqüentes enfermidades” 1 Timóteo 5:23. O vinho que o Apóstolo Paulo fala para Timóteo é o mesmo vinho (oinos) tratado em Ef 5:18, ou seja, vinho alcoólico.


CONCLUSÃO

É inegável que o vinho faz parte de toda a Bíblia e de toda a história de Israel e de toda a história da Igreja, inclusive desde os dias da Igreja Apostólica. Seu uso se fez presente nos patriarcas do Antigo Testamento, nos sacrifícios e cerimônias da Antiga Aliança, na dieta de reis, sacerdotes, judeus, dos apóstolos, etc. Igualmente seu uso se fez presente e sem objeções no seio da Reforma Protestante. Seu simbolismo e importância são incontestáveis em toda a Bíblia (inclusive na Ceia do Senhor). O vinho, naturalmente, é uma dádiva de Deus, que o criou, assim como criou naturalmente o álcool e o processo de fermentação. Relegar ao vinho ou ao álcool um status de pecado é o mesmo que atribuir a Deus a criação de algo pecaminoso, a criação do próprio pecado.

O pecado não repousa no vinho em si, pois o mesmo é neutro, incapaz de carregar o mal em si mesmo. Se assim fosse deveríamos nos abster de comer carne e de nos alimentar, pois haveria a possibilidade de se exagerar na comida da carne e se findar por entrar na gula e na glutonaria, o que é condenável por Deus. Logo a culpa seria da carne ou do alimento? De modo nenhum! Do mesmo modo a culpa pela embriaguez não é do vinho ou da bebida alcoólica, mas de quem fez uso imoderado do mesmo.

A questão de beber ou não, moderadamente, é algo da liberdade cristã, não sendo pecado, como acima se demonstrou exaustivamente; portanto não cabe ao cristão ser julgado por beber moderadamente (‘Portanto, ninguém vos julgue pelo comer, ou pelo beber’ Colossenses 2:16). O fato de um irmão achar que beber vinho é pecado não torna tal prática pecado, pois quem legislou foi Deus e não nos é dado legislar (Ap 22:18,19); sobre isso fica apenas o cuidado da recomendação de Paulo em Romanos 14:20-23, bem como a sentença: “Portanto, quer comais quer bebais, ou façais outra qualquer coisa, fazei tudo para glória de Deus” 1 Co 10:31.

Como bem falou o Apóstolo Paulo, “tudo é limpo” (Rm 14:20) e “Todas as coisas são puras para os puros” Tito 1:15. Devemos ter o cuidado descrito em Cl 2:20-23: “Se, pois, estais mortos com Cristo quanto aos rudimentos do mundo, por que vos carregam ainda de ordenanças, como se vivêsseis no mundo, tais como: Não toques, não proves, não manuseies? As quais coisas todas perecem pelo uso, segundo os preceitos e doutrinas dos homens; as quais têm, na verdade, alguma aparência de sabedoria, em devoção voluntária, humildade, e em disciplina do corpo, mas não são de valor algum senão para a satisfação da carne”. Amém!

“Vai, pois, come com alegria o teu pão e bebe com coração contente o teu vinho, pois já Deus se agrada das tuas obras” Eclesiastes 9:7.



“E aquele dinheiro darás por tudo o que deseja a tua alma, por vacas, e por ovelhas, e por vinho, e por bebida forte, e por tudo o que te pedir a tua alma; come-o ali perante o SENHOR teu Deus, e alegra-te, tu e a tua casa” Dt 14:26.

Com amor e temor,

Anchieta Campos