O
meio protestante (ou evangélico, como queiram) é notadamente o seguimento da
cristandade mais voltado para o estudo e a observância da Bíblia Sagrada. Desde
a época da Reforma Protestante que o próprio conhecimento em si (em suas mais
variadas vertentes científicas e filosóficas) ganhou força e desenvolvimento no
mundo, sendo a Reforma – com seus teólogos reformadores – uma das principais responsáveis
pelo desenvolvimento da literatura alemã, inglesa, francesa, e etc., por
intermédio da tradução da Bíblia para essas e outras línguas.
A
cada ano que se passa o conhecimento teológico só vem sendo cada vez mais
lapidado e aperfeiçoado no segmento reformado da cristandade, com uma expansão de
produções teológicas e de um acervo de literatura bíblica sempre ascendente.
Hoje são inúmeras as editoras evangélicas espalhadas pelo Brasil e pelo mundo,
dotadas de uma boa safra de teólogos altamente gabaritados e preparados na
Sagrada Escritura.
Porém,
ainda que o mais raso estudioso da teologia tenha conhecimento do fundamento
bíblico do princípio da Sola Scriptura,
ainda não raro encontramos certos temas relativamente “complicados” de serem
tratados e abordados de um modo puro e imparcial em nosso meio. Um deles (e um
dos principais) é o do relacionamento entre o crente e a bebida com conteúdo
alcoólico.
O
fato é que até mesmo nas igrejas ditas mais “liberais” o assunto bebida
alcoólica é difícil (principalmente nas correntes pentecostais clássicas e no
Brasil). Verdadeiramente será raro achar um crente em Jesus com o qual você
consiga prosear biblicamente sobre o assunto, pois a mente da maioria
esmagadora dos evangélicos está, digamos, “formada” para condenar imediatamente
o uso (mesmo que moderado) de qualquer bebida alcoólica.
Mas
afinal de contas, o que a história judia e cristã, e principalmente a Bíblia
(nossa regra maior de fé e conduta humana) têm a dizer a respeito deste
assunto?
Vamos
descobrir!
UMA
ABORDAGEM HISTÓRICA
Fazendo
empréstimo das palavras do irmão Danilo Fernandes (editor do Portal Genizah), temos o valioso
registro da história da Igreja Cristã sobre o tema bebida alcoólica, em artigo
de sua autoria publicado na festejada revista cristã “Cristianismo Hoje” (Leia
o artigo completo aqui http://www.genizahvirtual.com/2012/07/o-evangelico-e-o-alcool.html):
“O que a maioria
dos evangélicos brasileiros desconhece é que esta visão estigmatizada acerca do
álcool é coisa muito recente na história da Igreja. Ao longo de quase 2 mil
anos de cristandade, prevaleceu a noção de que a bebida, em si, é neutra, uma
dádiva do Senhor que traz alegria – sendo o seu consumo excessivo, ou
embriaguez, esta sim, pecaminosa. De fato, muitos crentes se escandalizariam ao
descobrir que, na galeria dos heróis da fé protestante, homens e mulheres de
Deus consumiam bebida alcoólica (...) O produto da uva era parte fundamental da
cultura, da religiosidade e da economia do povo hebreu, desde sua origem”.
Realmente
a questão do uso (moderado) da bebida alcoólica sempre foi – na história da
cristandade – tratado com normalidade. Aprendemos ainda que tal assunto foi abordado
já no primeiro catecismo cristão de que se tem registro, a famosa Didaquê (também conhecida como Instrução dos Doze Apóstolos), datada
do século I, ou seja, elaborada na Era Apostólica da Igreja. Em referido
catecismo ficou cristalino a liberdade do livre uso do vinho, tanto na celebração
da Ceia do Senhor, bem como no consumo cotidiano dos irmãos primitivos, onde
inclusive havia uma instrução determinando a existência de uma reserva de vinho
da comunidade, para ser servida aos profetas visitantes e, quando na ausência
destes, fornecido aos pobres.
Continua
o irmão Danilo: “Clemente de Alexandria
(que viveu aproximadamente entre os anos 150 e 215 da Era Cristã) julgava
absolutamente justo ao homem consumir a bebida para o seu relaxamento e
defendeu fortemente a presença obrigatória do vinho na Ceia do Senhor, contra
as tentativas de gnósticos de substituir o vinho por água (...) O fim do
Império Romano, no século 5, fez surgir o modelo econômico feudal, no qual os
mosteiros, abadias e outras estruturas religiosas passaram a produzir os seus
víveres – e o vinho era item fundamental, não apenas na dieta, mas para as
celebrações religiosas. A cerveja também era produzida e largamente consumida
pelos religiosos. Os monges foram responsáveis pela maior parte da produção de
vinho e cerveja na idade média e também pelo aprimoramento dos processos de
fabricação”.
O
irmão Danilo Fernandes prossegue com a descrição histórica até chegar à época da
Reforma Protestante: “A Reforma
Protestante é marcada pelo retorno às Escrituras, mas também pelo esforço dos
reformadores em romper com as tradições católicas o quanto fosse possível,
estabelecendo uma distância não apenas teológica, mas também cultural. Contudo,
a visão dos reformadores quanto ao consumo da bebida não recebeu novo
escrutínio, ao contrário: eles doutrinaram a Igreja a receber a bebida como uma
bênção de Deus e a usufruir dela com moderação, não se deixando dominar por
ela. Lutero consumia vinho e era conhecido como um grande bebedor de cerveja,
produzida por sua esposa, Catharina. Já João Calvino recebia como parte de seu
salário anual da Igreja Reformada suíça sete tonéis de vinho”.
Inquestionavelmente
a Reforma Protestante foi uma grande obra levantada por Deus para reavivar a
Igreja Cristã da Idade Média, a qual havia sido feita refém dos abusos e
desvios doutrinários e teológicos da Igreja Católica Romana. Mas não vemos
nenhum reformador combatendo o recorrente uso da bebida alcoólica no meio da
cristandade. Como bem já citado acima, a esposa de Lutero fabricava a sua
própria cerveja, a qual o reformador alemão consumia com regularidade; bem como
João Calvino recebia tonéis de vinho como porção do seu pagamento por parte da
Igreja Reformada Suíça. Poderia também (e tranquilamente) discorrer linhas e
mais linhas sobre a relação (bem próxima) entre o reformador escocês John Knox
com o whisky. As palavras de Martinho Lutero refletem bem a naturalidade com a
qual a bebida alcoólica era tratada no meio religioso cristão do século XVI: “E enquanto eu dormia ou bebia a cerveja de
Wittenberg junto de meus amigos Philipe e Amsdorf, a Palavra enfraquecia o
papado de forma tão grandiosa que nenhum príncipe ou imperador conseguiu
infligir-lhes tantas derrotas. Eu nada fiz: a Palavra fez tudo” (Martinho
Lutero, LW 51.77).
Por
fim, só vemos a contemplar a primeira objeção à bebida alcoólica no século 18,
com o movimento metodista emplacado pelo célebre inglês John Wesley. A partir
daí a tese da abstenção total da bebida alcoólica veio ganhando força no meio
evangélico, com reflexos mais fortes no meio pentecostal brasileiro.
UMA
ABORDAGEM BÍBLICA-TEOLÓGICA
A
Bíblia é um livro que contém mais princípios que mandamentos isolados. A bem da
verdade, todo mandamento bíblico (objetivo) é o reflexo de um princípio
geral-norteador maior (de caráter essencialmente subjetivo). Devemos ter a
consciência de que assim como no Direito o subjetivo pesa tanto quanto o
objetivo, na justiça divina também não é diferente. Deus consegue não ser um
intransigente total e ainda assim cumprir a justiça de sua Palavra. Provérbios
12:22 diz que “O homem de bem alcançará o favor do SENHOR, mas ao homem de
intenções perversas ele condenará”, ver ainda Hb 4:12 com atenção e Lc
10:13,14; 1 Sm 16:7; Pv 6:16-19; Mt 22:35-40; Rm 13:8; Gl 5:22,23. Devemos
ainda compreender que mais importante é a intenção motivadora do coração em
praticar determinado feito, do que o próprio e mero ato cumpridor e observador
da lei (mandamento objetivo); é o que podemos perceber claramente em Mt
19:16-24. Portanto, devemos ter a consciência de que na questão bíblica da
bebida alcoólica (notadamente do vinho) não é diferente.
De
todo modo, percebemos de pronto que não há simplesmente nenhuma norma bíblica proibindo
o consumo moderado de bebida alcoólica (a partir de agora podendo ser tratada
neste artigo somente como vinho). A palavra de Deus censura o consumo imoderado
do vinho (cf. Pv 23:29,30; Is 5:11; Dt 21:20; Rm 13:13; Gl 5:21; 1 Pe 4:3; Ef
5:18; 1 Tm 3:8; Tito 2:3; 1 Co 5:11; Lc 21:34), mas não o consumo moderado do
mesmo.
Destarte,
em Provérbios 23:20 está escrito: “Não estejas entre os beberrões de vinho, nem
entre os comilões de carne”. O vocábulo hebraico para “beberrões de vinho” é sâbhâh, que significa “beber fartamente”,
“ficar embriagado”, sendo também sinônimo de “bêbado”. Tal significado fica
ainda mais evidente ao se analisar que tal palavra está posta justamente ao
lado de “comilões de carne”, ou seja, o que se censura em Provérbios 23:20 é o
exagero, tanto no vinho como na ingestão de alimentos (cf. Lc 21:34: ‘E olhai
por vós, não aconteça que os vossos corações se carreguem de glutonaria, de
embriaguez’).
Destaque-se
ainda que toda vez que a bíblia trás no Novo Testamento a reprovação a “bebedice”
e “bebedeiras”, cita tais vocábulos imediatamente ao lado do vocábulo “glutonarias”
(cf. Rm 13:13; Gl 5:21; 1 Pe 4:3), em uma clara alusão que a reprovação repousa
sobre o excesso, tanto na bebida como na comida do banquete.
O
vinho tem uma representatividade tão grande em toda a Bíblia que foi instituído
como elemento dos sacrifícios nas cerimônias de consagração da Antiga Aliança
(Êx 29:40; Esdras 6:9), cf. Lv 23:13: “E a sua oferta de alimentos, será de
duas dízimas de flor de farinha, amassada com azeite, para oferta queimada em
cheiro suave ao SENHOR, e a sua libação será de vinho, um quarto de him”. Ver
ainda Nm 15:5-10 e 28:14. Ainda no Antigo Testamento vemos a seguinte sentença:
“E aquele dinheiro darás por tudo o que deseja a tua alma, por vacas, e por
ovelhas, e por vinho, e por bebida forte, e por tudo o que te pedir a tua alma;
come-o ali perante o SENHOR teu Deus, e alegra-te, tu e a tua casa” Dt 14:26.
Analisemos
ainda as palavras de Isaías: “Ó VÓS, todos os que tendes sede, vinde às águas,
e os que não tendes dinheiro, vinde, comprai, e comei; sim, vinde, comprai, sem
dinheiro e sem preço, vinho e leite. Por que gastais o dinheiro naquilo que não
é pão? E o produto do vosso trabalho naquilo que não pode satisfazer? Ouvi-me
atentamente, e comei o que é bom, e a vossa alma se deleite com a gordura” Is
55:1,2. Oras, há aqui um convite divino para comprar vinho. Percebe-se mais uma
vez que o consumo moderado de vinho não é censurado, mas sim chega a ser
incentivado! Neste exemplo o vinho é citado ao lado do leite, notadamente como
sendo também um alimento, um alimento bom e que satisfaz (versículo 2).
O
salmista afirma que é Deus quem faz o vinho, o qual alegra o coração do homem: “E
o vinho que alegra o coração do homem, e o azeite que faz reluzir o seu rosto,
e o pão que fortalece o coração do homem” Salmos 104:15. Oras, qual vinho será
esse senão o vinho alcoólico? Pode, porventura, o suco de uva não alcoólico
alegrar o coração do homem? Este versículo é uma clara alusão ao vinho
fermentado, alcoólico. Destarte, o prensado natural da uva é o mosto (não
alcoólico), o qual evolui rapidamente para um produto alcoólico em função da
fermentação natural.
No
Novo Testamento, conforme já citado, o ensino é a censura ao exagero, e não ao
vinho em si. Oras, porventura o primeiro sinal e milagre de Jesus não fora
justamente transformar água em vinho?! Destarte, Jesus transformou a água em
vinho, e o termo original usado em Jo 2:9 (grego oinos) é o mesmo usado em Ef 5:18, onde Paulo fala do vinho alcoólico
capaz de embriagar. Ademais, a palavra grega para “embriagueis” em Ef 5:18 é methyskô (E não vos embriagueis (methyskô) com vinho (oinos), em que há contenda, mas
enchei-vos do Espírito), que significa “intoxicar”, “estar embriagado”, palavra
correlacionada com methysos, que
significa “bêbado”, “beberrão”, e sendo methyskô
ainda a forma prolongada transitiva de methyô,
que significa “beber até a intoxicação”, “ficar embriagado”, “beber muito”.
Portanto, Jesus transformou água em vinho alcoólico, capaz de embriagar, tanto
que os participantes da festa de casamento em Caná não perceberam nenhuma
diferença entre o vinho transformado por Jesus e os vinhos que eles costumavam
beber e já tinham bebido na festa.
Mas
não fica só nisso, ao ponto de vermos recomendações de consumo moderado de
vinho no Novo Testamento. “Não bebas mais água só, mas usa de um pouco de vinho
(oinos), por causa do teu estômago e
das tuas freqüentes enfermidades” 1 Timóteo 5:23. O vinho que o Apóstolo Paulo
fala para Timóteo é o mesmo vinho (oinos)
tratado em Ef 5:18, ou seja, vinho alcoólico.
CONCLUSÃO
É
inegável que o vinho faz parte de toda a Bíblia e de toda a história de Israel
e de toda a história da Igreja, inclusive desde os dias da Igreja Apostólica.
Seu uso se fez presente nos patriarcas do Antigo Testamento, nos sacrifícios e
cerimônias da Antiga Aliança, na dieta de reis, sacerdotes, judeus, dos
apóstolos, etc. Igualmente seu uso se fez presente e sem objeções no seio da
Reforma Protestante. Seu simbolismo e importância são incontestáveis em toda a
Bíblia (inclusive na Ceia do Senhor). O vinho, naturalmente, é uma dádiva de
Deus, que o criou, assim como criou naturalmente o álcool e o processo de
fermentação. Relegar ao vinho ou ao álcool um status de pecado é o mesmo que
atribuir a Deus a criação de algo pecaminoso, a criação do próprio pecado.
O
pecado não repousa no vinho em si, pois o mesmo é neutro, incapaz de carregar o
mal em si mesmo. Se assim fosse deveríamos nos abster de comer carne e de nos
alimentar, pois haveria a possibilidade de se exagerar na comida da carne e se
findar por entrar na gula e na glutonaria, o que é condenável por Deus. Logo a
culpa seria da carne ou do alimento? De modo nenhum! Do mesmo modo a culpa pela
embriaguez não é do vinho ou da bebida alcoólica, mas de quem fez uso imoderado
do mesmo.
A
questão de beber ou não, moderadamente, é algo da liberdade cristã, não sendo
pecado, como acima se demonstrou exaustivamente; portanto não cabe ao cristão
ser julgado por beber moderadamente (‘Portanto, ninguém vos julgue pelo comer,
ou pelo beber’ Colossenses 2:16). O fato de um irmão achar que beber vinho é
pecado não torna tal prática pecado, pois quem legislou foi Deus e não nos é
dado legislar (Ap 22:18,19); sobre isso fica apenas o cuidado da recomendação
de Paulo em Romanos 14:20-23, bem como a sentença: “Portanto, quer comais quer
bebais, ou façais outra qualquer coisa, fazei tudo para glória de Deus” 1 Co 10:31.
Como
bem falou o Apóstolo Paulo, “tudo é limpo” (Rm 14:20) e “Todas as coisas são
puras para os puros” Tito 1:15. Devemos ter o cuidado descrito em Cl 2:20-23: “Se,
pois, estais mortos com Cristo quanto aos rudimentos do mundo, por que vos
carregam ainda de ordenanças, como se vivêsseis no mundo, tais como: Não
toques, não proves, não manuseies? As quais coisas todas perecem pelo uso,
segundo os preceitos e doutrinas dos homens; as quais têm, na verdade, alguma
aparência de sabedoria, em devoção voluntária, humildade, e em disciplina do
corpo, mas não são de valor algum senão para a satisfação da carne”. Amém!
“Vai,
pois, come com alegria o teu pão e bebe com coração contente o teu vinho, pois
já Deus se agrada das tuas obras” Eclesiastes 9:7.
“E
aquele dinheiro darás por tudo o que deseja a tua alma, por vacas, e por
ovelhas, e por vinho, e por bebida forte, e por tudo o que te pedir a tua alma;
come-o ali perante o SENHOR teu Deus, e alegra-te, tu e a tua casa” Dt 14:26.
Com
amor e temor,